O caso Samarco/Bento Rodrigues/Rio Doce – a cadeia de um
sistema de trituração da natureza, da inteligência e das condições de convívio
e construção democrática e legal de uma sociedade
POR QUEM OS SINOS DO LICENCIAMENTO DOBRAM
O rompimento das barragens de rejeitos da Samarco (Vale
S.A.+BHP Billiton) em Mariana não foi suficiente para sensibilizar o governador
Fernando Pimentel para retirar o regime de urgência e a essência do projeto de
lei (PL) 2946/2015, que propõe o fura-fila e institucionaliza o licenciamento
de gabinete de projetos e obras “considerados prioritários” pelo poder
econômico em Minas Gerais.
No referido PL, disponível no site da ALMG, o núcleo duro do
governo Pimentel não propõe qualquer melhoria na composição do Conselho
Estadual de Política Ambiental (Copam), órgão que, nos últimos anos, vem
licenciando descalabros como as megabarragens de rejeitos e grandes operações
mineradoras, em total dissintonia com a preservação da água, da natureza e o
respeito às comunidades próximas às áreas impactadas e ameaçadas.
O PL 2946, por alguns apelidado de AI-5 ambiental (um cheque
em branco com força de lei), propõe a centralização do licenciamento, mediante
a criação de um setor específico de “projetos considerados prioritários” no
âmbito do comando da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável (Semad).
Não por acaso, o PL de Pimentel está afinado com outro que
tramita no Senado Federal, por iniciativa do senador Romero Jucá (PMDB/RO) – o
de nº 654/2015. Segundo o artigo 1º deste PL, regras excepcionais serão criadas
“para o licenciamento ambiental especial de empreendimentos de infraestrutura
estratégicos para o desenvolvimento nacional sustentável”, tais como: “sistemas
viário, hidroviário, ferroviário”, “portos”, “energia” e “exploração de
recursos naturais”, que “serão considerados de utilidade pública” – em
consonância com o também disposto na proposta de código de mineração (PL
5803/2013), defendido pelos deputados federais Leonardo Quintão (PMDB/MG) e
Gabriel Guimarães (PT/MG), entre outros.
O PL do senador Jucá combina com o PL do governador
Pimentel, ao estabelecer uma instância (“comitê específico para cada
licenciamento”), para dar celeridade ao “licenciamento ambiental especial”. Em
Minas Gerais, Pimentel também propõe uma instância com poderes especiais: o
“órgão responsável pela análise de projetos considerados prioritários” – “para
o desenvolvimento econômico, social ou para a proteção do meio ambiente”,
argumenta.
Os PLs de Fernando Pimentel e Romero Jucá não são propostas
isoladas, mas medidas pré-negociadas, quando não concebidas pelos advogados de
grupos econômicos poderosos (empreiteiras, mineradoras etc) estabelecidos em
corporações como a Confederação Nacional das Indústrias (CNI), a Federação das
Indústrias de Minas Gerais (Fiemg), o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram)
e o sindicato das empresas de extração mineral em MG (Sindiextra).
DONOS DO PODER E USURPADORES DE DIREITOS
Ao longo de 2015, encontros vêm sendo organizados por
lobistas da mineração, visando fazer a cabeça de juízes de direito,
desembargadores, ministros e auditores de tribunais de contas, e a concertação
dos próprios empresários da mineração com autoridades dos poderes executivos e
legislativos do país.
São exemplo disso o 1º Congresso Mineiro sobre Exploração
Minerária, organizado pela Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis) em
junho de 2015; e a realização simultânea, na fatídica data do rompimento das
barragens da Samarco, do seminário “Novo Marco Regulatório do Setor de
Mineração e o Controle Externo” (na sede do TCU em Brasília) e de encontro do Fórum Brasileiro de
Mineração, na sede da Fiemg em Belo Horizonte.
Do encontro na Fiemg, participaram dirigentes das maiores
empresas de mineração no país, o relator da proposta do novo código da mineração
e, representando o governo estadual, o secretário de Desenvolvimento Econômico,
Altamir Rôso, que, não só considerou a Samarco “vítima do rompimento” das
barragens Fundão e Santarém, como defendeu que o Estado delegue a fiscalização
ambiental a empresas.
Se a reunião de empresários não contou, como de praxe, com a
participação de representantes legítimos da sociedade que vêm enfrentando os
problemas e arbítrios de empresas mineradoras, estranhamente, o congresso dos
magistrados e o seminário do TCU não se dignaram a pautar o contraditório no
debate dos conceitos e medidas propostas sobre a regulamentação, o
licenciamento ambiental e o julgamento de questões envolvendo a atividade
minerária.
FONTES E RESPONSABILIDADES DE UM DESASTRE PREVISTO
Responsabilizar a Samarco pelo desastre ocorrido em Mariana,
com reflexos em toda a bacia hidrográfica do rio Doce, em Minas Gerais e no
Espírito Santo, é pouco e não solucionará um problema que, além de técnico, é
social, cultural e econômico.
Autoridades governamentais, formuladores e tomadores de
decisões sobre políticas econômicas habituaram-se a ver a exportação de bens
primários (as chamadas commodities) como a tábua de salvação da indústria
brasileira. A ideia, implementada desde meados do século passado, apostou na
venda internacional de minério de ferro, como modo de obtenção de divisas para
industrializar o Brasil. Assim, instituições como o BNDES foram criadas e
infraestruturas, como hidrelétricas, ferrovias e portos foram implantados para
garantir o escoamento do produto. Este padrão de desenvolvimento foi aplicado
também à Amazônia, vem demandando estados do Nordeste e, em momento de
crescente escassez hídrica, vem propor, outros modais de transportes, como os
minerodutos.
A poção mágica para a industrialização do país adquiriu tais
poderes, que passou a ditar as prioridades do que alguns chamam de
desenvolvimento econômico, financiando políticos e entranhando-se na máquina
pública e nas cabeças de vários representantes e autoridades da elite brasileira.
O feitiço virou-se contra a tese da capitalização do país para sua
industrialização. O lobby minerador coage a possibilidade de diversificação da
matriz produtiva nacional, concorrendo para a reprimarização e
desindustrialização da nossa economia.
MITOS PLANEJADOS
A emergência do debate ambiental coincide com o período da
redemocratização no Brasil. Ao mesmo tempo, a transformação do país numa
sociedade de massas e desordenadamente urbana propiciou que valores de mercado
se firmassem de forma irracional em vários segmentos da sociedade, corrompidos
por prioridades e interesses corporativos, contra a perspectiva de um
planejamento que faça jus à defesa e promoção do bem comum.
A corrupção atingiu veículos de comunicação social e setores
da comunidade científico-tecnológica tornaram-se serviçais dos chamados
interesses do mercado e dos conceitos inventados para enganar a sociedade e
ludibriar e formar comunidades técnicas e profissionais que há muito vêm
perdendo o juízo e o senso de ridículo e dignidade.
No caso específico da mineração, um inventário de mitos e
mentiras vem sendo criado desde os anos 1990, como forma de escamotear e
subdimensionar os impactos e riscos implicados na atividade que passou a
dominar extensos territórios.
CAIU A MÁSCARA
O desastre de Mariana, ao desmascarar negócio tido como
sustentável dos grupos Vale S.A. e BHP Billiton, também despiu as figuras
arrogantes e incompetentes dos atuais presidentes da CNI e da Fiemg, senhores
Robson Andrade e Olavo Machado, respectivamente.
O presidente da Fiemg, ex-diretor de empresa comandada por
Robson Andrade, habituou-se nestes tempos de colapso ambiental e crise hídrica
a criticar o sectarismo e até mesmo o fisiologismo dos ambientalistas. A
carapuça veste bem em quem acusa. Afinal, o que fazem a CNI e a Fiemg senão
concentrarem esforços na defesa de negócios de que são fornecedoras e
prestadoras de serviços as empresas dos respectivos presidentes? Qual o esforço
real e proporcional destas organizações na diversificação da matriz industrial
e econômica brasileira?
O espírito de camaradagem e aparelhamento corporativo, se
estende também ao presidente do Ibram e do Sindiextra, senhor Fernando Coura,
que, na relação com o governo Pimentel, agregou seu genro como sub-secretário
de Mineração da pasta de Desenvolvimento Econômico.
Esses arautos do “bom senso”, do “equilíbrio” e da
“razoabilidade”, junto com seus pares nos três poderes dos municípios, estados
e União, lideram o cinismo, que faz crescer a falta de esperança de boa parte
da sociedade brasileira. Eles sustentam que a gestão e a fiscalização ambiental
devem ser baseadas no automonitoramento pelas próprias empresas causadoras de
danos sociais e ambientais, no contínuo e planejado desmonte de órgãos
públicos, cujas chefias, antes de nomeadas, passam habitualmente por seu crivo.
A extensão da ideologia disfarçada de saber técnico alcançou
produzir em não poucas mentes a ideia de que a mineração, na proporção e
densidade hoje operada na região central de Minas Gerais, é sustentável,
comporta mais empreendimentos e ampliações, e só tem viabilidade econômica se
mantiver o atual modelo de produção, com estruturas altamente questionáveis
como as monstruosas barragens de rejeitos. Se a Samarco não consegue, em plena
estiagem, segurar uma barragem até então tida como segura, o que havemos de
pensar das outras centenas que estão nesta mesma região?
A mineração tornou-se indiscutivelmente mola propulsora da
acomodação e da expulsão da verdadeira indústria e da capacidade de criação de
Minas Gerais. Ao investirem tal energia em empoderar cada vez mais este
segmento, governantes, parlamentares e servidores públicos afastam outras
possibilidades de desenvolvimento no Estado, concentram trabalho em uma fórmula
visivelmente ultrapassada de arrecadar e sem perspectiva de um futuro de fato
sustentável e duradouro.
Afinal, o nível de agressão ambiental das mineradoras
adquire tal dimensão por onde passam, que repelem investimentos em indústrias
limpas e de maior valor agregado de produção e geração de empregos. Tais
atividades procuram ambientes mais interativos e dinâmicos, o que obriga Minas
Gerais a desperdiçar oportunidades e muitos valores. De outra forma,
trabalhadores da mineração tornam-se vítimas da ambição desmedida e
insustentável dos que querem minerar a qualquer custo. São massa de manobra e
sujeitos a constantes chantagens por parte das estruturas de comando de tais
empresas, que agem com a conivência de governantes e autoridades públicas.
DESCASO COM A NATUREZA, ATINGIDOS E TRABALHADORES
Nos dias seguintes ao desastre da Samarco/Vale/BHP em
Mariana, tomamos conhecimento de corpos resgatados, sem a devida divulgação à
sociedade e famílias. O acesso à informação está sendo administrado, sem
transparência, o que reforça a desconfiança geral na autoridade pública
estadual. De forma pouco republicana, o governador do Estado deu entrevista
coletiva na sede da empresa responsável pelo acidente, e disse que manterá a
proposta das exigências escabrosas que quer impor ao licenciamento ambiental em
Minas Gerais, em consonância com a proposta do novo marco regulatório da
mineração e o PL do “licenciamento ambiental especial”, que tramitam na Câmara
dos Deputados e no Senado Federal.
Com isso, reforçamos o sentimento de LUTO e LUTA neste
trágico momento da história dos mineiros, das famílias atingidas e da vida da
bacia hidrográfica do rio Doce, para a qual, a mineradora Samarco já
“contribui” com nada menos do que três minerodutos!
E conclamamos todos a comparecerem a nossas mobilizações e
debates. A protestar contra a irresponsabilidade das autoridades e pela
criminalização dos responsáveis por essa brutal tragédia ecológica e atentado à
vida de milhares de pessoas.
É NOSSO DIREITO E DEVER, ENQUANTO CIDADÃOS E ORGANIZAÇÕES
CIVIS BRASILEIRAS, EXIGIR MEDIDAS IMEDIATAS:
A participação e deliberação dos trabalhadores, assim como
das comunidades potencialmente atingidas por tais projetos, em comissões de
segurança das atividades de mineração, assim como de outras atividades de
risco;
Que a sociedade e as comunidades sejam respeitadas na
determinação das alternativas técnicas e locacionais das estruturas, bem como
das áreas que devem ser protegidas de atividades com impactos intensos e
irreversíveis;
Contrapor à perspectiva do monopólio da atividade megaextrativista,
o estabelecimento de ritmos de exploração e oportunidades de diversificação
econômica mais condizentes com a capacidade e sustentabilidade territorial das
bacias hidrográficas e com o direito das pessoas à felicidade, à saúde, a meio
ambiente respeitado e a trabalho digno em todas as atividades;
Dimensionar a magnitude do estrago causado à fauna, aos
ecossistemas, às águas e adotar ações e planos imediatos de redução dos
impactos negativos e de recuperação ambiental da bacia do rio Doce a curto,
médio e longo prazos;
Garantir a estabilidade do emprego dos trabalhadores
atingidos (efetivos ou terceirizados), inclusive nas imediatas atividades de
recuperação e restauração ambiental;
Discutir e submeter a recuperação da bacia do rio Doce à
aprovação da sociedade – se necessário com o imediato bloqueio dos bens da
empresa e responsáveis diretos pelo desastre, para a garantia da indenização à
população vitimizada e da recuperação das áreas atingidas pelo rompimento das
barragens;
Suspender o regime de urgência do PL 2946/2015 e os regimes
de exceção ou licenciamento especial ou prioritário para grandes projetos,
particularmente os de mineração; e
Promover grande debate estadual e nacional visando ampla
reformulação, a qualidade, a participação equilibrada e a segurança jurídica do
meio ambiente, dos direitos das comunidades, das estruturas de gestão,
monitoramento e licenciamento ambiental em níveis municipal, estadual e
nacional.
NOSSA SOLIDARIEDADE AOS TRABALHADORES, FAMÍLIAS E
COMPANHEIROS VITIMADOS COM SUA PERDA! NOSSO CONFORTO ÀS FAMÍLIAS QUE PERDERAM
CASAS, ENTES QUERIDOS E PAZ! NOSSA CONCLAMAÇÃO PARA QUE OS MINEIROS E OS
BRASILEIROS REFLITAM SOBRE ESSE GRAVE MOMENTO E NÃO APOIEM ATITUDES QUE, EM
NOME DO “DESENVOLVIMENTO”, VÊM PRODUZIR ENORMES RETROCESSOS NA CONSTRUÇÃO
DEMOCRÁTICA E NA PROMOÇÃO DE UM MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO PARA TODOS E PARA AS
FUTURAS GERAÇÕES.
Mariana, Belo Horizonte,
Bacia do Rio Doce, Minas Gerais/Espírito Santo, Brasil,
13 de novembro de 2015
Organizações signatárias:
De início algumas organizações autorizaram lançar os
respectivos nomes subscrevendo o documento. Citamos algumas:
Ação Sindical Mineral
Brigadas Populares
CNTI
CSP-Conlutas e Luta Popular
Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas de Minas
Gerais
Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de
Minas Gerais
Federação dos Trabalhadores nas Indústrias do Vestuário de
Minas Gerais
Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Fiação e
Tecelagem de Minas Gerais
Federação dos Trabalhadores nas Indústrias de Papel e
Papelão de Minas Gerais
Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas de Minas
Gerais
Fonasc-CBH- Forum nacional da Sociedade Civil nos CBHs.
IAB
IBEIDS
MovSAM
Sindicato dos Arquitetos
Sinfrajupe
Fonte: http://fonasc-cbh.org.br/?p=14457
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